Precisamos falar sobre “Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem”
Em novo documentário, Emicida explica o título ao longo dos 89 minutos de duração: tudo tem seu tempo, mas ele tem pressa para fazer acontecer. O filme que entrou para o catálogo da Netflix dia 08/12 mira também no público internacional com a legenda disponível em outros 4 idiomas. Mas isso era de se esperar, já que o artista acaba de ganhar seu primeiro Latin Grammy na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa” com o álbum que origina o filme.
Mas, afinal, quem é Emicida?
Foto: Reprodução/Instagram
Talvez se alguém te perguntar sobre Leandro Roque de Oliveira, você pode parar para pensar por um momento. Mas se alguém te perguntar sobre Emicida, há grandes chances de você já ter escutado algum de seus hits.
Leandro é o nome do rapper de 35 anos que nasceu e cresceu na zona norte de São Paulo. Desde sua primeira mixtape, Pra quem já Mordeu um Cachorro por Comida, até que eu Cheguei Longe…, lá em 2009, Emicida coleciona outras duas tapes, 3 álbuns de estúdio e 3 CDs ao vivo.
Emicida, além de rapper premiado internacionalmente, também é escritor, estilista, empresário e, agora, cineasta. Ao lado de seu irmão, Evandro Fióti, é dono da produtora e marca de roupa LAB – Laboratório Fantasma. Na carreira de escritor, conta com 3 títulos: “Amoras” (2018), “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…: Antalogia inspirada no universo da mixtape” (2019) e “E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas” (2020).
Foto: Reprodução/Instagram
Sobre AmarElo
O hit AmarElo tem sua origem em 1976, que é data de lançamento de “Sujeito de Sorte”, de Belchior. A canção do famoso rapaz latino-americano é usada como sample base para a versão de 2019 feita por Emicida com participação de Majur e Pabllo Vittar. Sobre o nome excêntrico escolhido tanto para a canção, quanto para o álbum, Emicida explica no documentário: “(Amar/Elo) É usar a força do amar, que é uma coisa que todos os seres humanos são capazes de fazer para construir esse elo.”
Além de nomear o documentário, AmarElo é também nome do último álbum do rapper e conta com colaborações de grandes nomes como Zeca Pagodinho e Fernanda Montenegro (atriz que representou o Brasil no Oscar em 1999 com nomeação de melhor atriz pelo filme Central do Brasil).
Foto: Reprodução/Instagram
ALERTA DE SPOILER
Sobre AmarElo: É Tudo Pra Ontem
O filme é dividido em 3 partes: Ato I – Plantar, Ato II – Regar e Ato III – Colher. Mas o longa autoexplica essa divisão. Emicida cultiva uma horta em sua casa, e esse fato simples é, na verdade, um grande pilar na vida do cantor e na construção do documentário. Ele explica que aprendeu sobre plantação vendo sua mãe cultivando. Mas que foi lendo as reflexões de Nelson Mandela que o fez crescer enquanto ser humano. Durante o período em que o líder africano esteve na prisão, ele costumava plantar, cultivar e escrever seus pensamentos sobre esse processo, o comparando com a vida. “A horta foi uma faculdadezinha que eu fiz enquanto fazia o disco”, diz em parte do filme.
Além de semeador, ele se diz fotógrafo do invisível, citando poema de Manoel de Barros.
“Escrever, pra mim, é ter a benção de passear pelo tempo. Estar aqui e agora, mas pode visitar e sentir, e também compartilhar os sentimentos, tanto do ontem, quanto os de amanhã.”
Mas, apesar disso, o filme não gira em torno dele. Com um misto de fotos, vídeos, animação e ilustração, Emicida usa seu espaço para dar voz à história dos negros brasileiros. Devendo até ser assistido em sala de aula.
O ponto de início do documentário é o show de Emicida no Theatro Municipal de São Paulo, em novembro do ano passado. E o local não foi escolhido por acaso. O Theatro é marco histórico na luta do movimento negro, com manifestação do Movimento Negro Unificado em plena ditadura militar no Brasil nas escadarias do teatro. A importância se dá também porque ali seria local de outra manifestação importante, no cinquentenário da abolição da escravatura no país. Mas, apesar de todos os esforços de Mário de Andrade, isso não foi possível.
E por que o Theatro Municipal de São Paulo? Além de toda essa explicação, Emicida escolheu o lugar pela necessidade de ocupar um lugar grandioso. Se antes os negros se manifestavam no lado de fora, agora eles se apresentam no lado de dentro.
Foto: Reprodução/Instagram
E é assim que se inicia a ligação de pontos feita durante o filme. Emicida usa da própria história para puxar a história do hip hop, rap, samba, grafite e direitos dos negros.
Ainda no palco do Municipal, Emicida diz durante a apresentação de sua visita a Angola. Lá, ele foi no Museu da Escravidão, onde havia uma pia em que os negros eram batizados na religião católica. E através de um cristianismo distorcido, foram levados a crer que não tinham alma. Durante todo o processo de criação e seu amadurecimento como pessoa, o rapper reforça que tudo o que temos somos uns aos outros. E, naquele momento no palco, ele explicou sua missão: fazer com que todos que ouvissem e que um dia acreditaram que não tinham alma, a recuperem.
Aulas de história à parte, ele também consegue fazer uma crítica à indústria musical. Em conversa com o músico Carlinhos 7 Cordas, Emicida diz que não se importaria em nomear o álbum AmarElo como álbum de trabalho ou não, “Rapaz, quanto melhor a música, menos eles tocam na rádio. Então eu vou fazer o que eu tenho que fazer”.
Reduzir “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” como um mero filme no catálogo de exibição em uma plataforma de streaming é quase um crime. Se com o álbum Emicida entregou um trabalho tão poético e genuíno que se transformou em visibilidade internacional, o documentário não é apenas sobre a carreira ou o processo de criação de um CD. É, sobretudo, sobre história, representatividade e resistência. AmarElo é uma carta de amor à arte brasileira e um pedido de respeito.
Abro um parêntese aqui para mencionar que além de histórico, o longa-metragem é também sobre memória e respeito. De todas as formas que o filme poderia ter terminado, a mensagem que Emicida traz é clara e é histórica, finalizando-o com imagens e entrevistas de Marielle Franco. Com ancestralidade, o documentário inicia e se encerra com um ditado Iorubá citado por Emicida: “Exú matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje”.
Assista o trailer abaixo. Lembrando que o documentário já está disponível na Netflix.
Se você é fã e acompanha o trabalho do Emicida, deve ter percebido que a canção, trilha dos créditos, é inédita. O artista lançou também nessa semana sua nova música, parceria com Gilberto Gil, “É Tudo Para Ontem“:
Transformando (quase) tudo em conteúdo e compartilhando de tudo um pouco. Jornalista paulistana e capricorniana.